Não faça isso!

A manchete não deixa dúvidas, os jovens estão acelerados em busca da infelicidade. Sim, você leu bem, eu disse infelicidade. Veja esta manchete do Caderno de Empregos: Jovens buscam a estabilidade. Trata de um texto sobre concursos, onde, depois de aprovados, os jovens terão, então, a sonhada sinecura desculpe-me, errei, eu ia dizer estabilidade. Quem busca estabilidade está morto. A vida é movimento, crescimento, subir, buscar a luz, transcender-se, ser.

Vivo dizendo nas palestras que faço aos jovens: — Pensem bem, vocês vão passar as melhores horas do dia, dos melhores anos da vida, trabalhando. E vão querer tirar desse trabalho apenas o ganho financeiro, apenas a indigesta e mortal estabilidade? É isso o que querem para a vida de vocês?

— Ah, mas o mercado está fechado, há poucas vagas, não é fácil achar bom emprego, boas oportunidades... e blablablá. E tomem dizer bobagens.

Quem foi que disse que o mercado está fechado? O mercado está fechado para incompetentes, por gente sem criatividade, sem coragem, sem ousadia, por gente que não suspeita do formidável talento que traz dentro do peito. E você vai querer matar isso tudo, vai querer se anular para a vida em busca de estabilidade, é isso? Francamente, você me decepciona. Aliás, não decepciona a mim, vai decepcionar a você se levar essa ideia pífia adiante.

O mercado está aberto, abertíssimo para gente com sonhos, ideais, com revoluções dentro do peito, com ardores na alma, com alma nos ardores, com vida por viver.

Olhe bem para o rosto das multidões que andam lendo jornais em busca de concursos, olhe bem, olhe nos olhos essas pessoas, depois me diga o que viu...

No passado, as pessoas casavam para sempre, não era isso? Mesmo que esse para sempre nunca tenha passado de um exagero criado pela religião. Sim, foram os homens que criaram a religião que inventaram a tolice do casamento para sempre. Mas existem, sim, os casamentos para sempre. Mas esses casamentos estão assentados sobre o amor. Um casamento sem amor não dura, acaba logo, é uma fumaça que logo se dispersa. Vale o mesmo para o "casamento" com o trabalho. Quem procura por estabilidade e anda sedento por concurso faz lembrar a pessoa que anda a procurar por um parceiro, ele ou ela, rico. Esse casamento nunca será um bom casamento, será sempre, e isso se chegar a tanto, uma conveniência. E as conveniências na vida, não raro, matam, quase nunca realizam.

Queres ser feliz no melhor dos casamentos? Casa com um trabalho por amor. E serás muito "rico".

LUIZ CARLOS PRESTES

Eu sei, mas não devia!

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que as janelas ao redor. E porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir a todas as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz aceita ler, todo dia, de guerra dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir e ouvir no telefone: hoje, não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se a acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que necessita. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E, a saber, que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a à poluição. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. As bactérias da água potável, à contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada. A temer a hidrofobia dos cães, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha o pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho esta duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para avitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde a si mesma.

MARINA COLASSANTI