Eu sei, mas não devia!

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que as janelas ao redor. E porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir a todas as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz aceita ler, todo dia, de guerra dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir e ouvir no telefone: hoje, não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se a acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que necessita. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E, a saber, que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a à poluição. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. As bactérias da água potável, à contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada. A temer a hidrofobia dos cães, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha o pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho esta duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para avitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde a si mesma.

MARINA COLASSANTI

Nenhum comentário: